'Todo Dia a Mesma Noite' é ode poderosa contra o esquecimento da boate Kiss

Assumir a responsabilidade de contar uma história como a da tragédia da boate Kiss em forma de ficção não é uma tarefa simples. Há vários fatores que interferem e pesam no resultado, principalmente quando falamos de um acontecimento tão recente e traumático.

Por isso, "Todo Dia a Mesma Noite" quer que o público saiba, antes de mais nada, que não se trata de uma espetacularização da dor.

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A série em cinco episódios estreia amanhã, dia 25, da Netflix. A obra é inspirada no livro-reportagem homônimo de Daniela Arbex e prioriza o ponto de vista de pais, familiares e sobreviventes do incêndio que matou 242 pessoas em Santa Maria (RS), em 27 de janeiro de 2013. Não há como fugir da dor, sobretudo no primeiro episódio, que reconstitui cenas difíceis de se assistir.

Mas há um cuidado para que essa dor não seja gratuita e, ao fazer isso, "Todo Dia a Mesma Noite" provoca o espectador a assistir à história de um ângulo diferente e mais particular do que aquele visto em páginas de jornais.

O bom trabalho começa pelo roteiro, que escolhe representantes dessa história para o público acompanhar, para que as vítimas da boate Kiss tenham nome, rosto, família, amigos e expectativas de futuro. Por meio desses personagens, é possível vislumbrar uma parte do tanto que se perdeu, e colocar quem está assistindo em uma posição de ver tudo com uma proximidade que só a ficção consegue proporcionar.

Mesmo sabendo do que vai acontecer, torcemos para que a realidade seja outra, para que o desfecho daquela noite seja diferente.

A princípio, pode espantar a decisão de já retratar o incêndio no primeiro episódio, sobretudo se o espectador esperava uma adaptação que abordasse o antes e culminasse na tragédia. Mas o objetivo não é esse, justamente porque não se trata de uma investigação. A direção-geral de Julia Rezende trata de deixar o tom bem claro e não criar suspenses desnecessários para a cena em si ou seus desdobramentos imediatos, com a corrida dos pais a hospitais em busca dos filhos e, posteriormente, ao ginásio. É doloroso porque não há outra alternativa, mas a série jamais esmiúça a ferida simplesmente para provocar mais drama.

O que o livro de Daniela Arbex faz — e, consequentemente, a adaptação também — é dar luz ao sofrimento e à batalha incessante das famílias, que aguardaram um julgamento durante nove anos, para depois verem o mesmo julgamento ser anulado em agosto do ano ado. A série acompanha os pais, familiares e sobreviventes na sua jornada de recuperação e reparação após a tragédia, escancarando também como os meandros do sistema judiciário brasileiro transformaram a tristeza em uma espera burocrática.

Por isso, ainda que trate de tudo com muito respeito, "Todo Dia a Mesma Noite" não é uma série leve e de fácil digestão. É um trabalho de denúncia, que busca fazer jus às memórias das vítimas e mostrar que a agem do tempo cumpre a cruel tarefa de invisibilizar a luta do coletivo de familiares e vítimas.