Filme negacionista ambiental é um dos dez vídeos mais postados no Telegram

A história de um Brasil que protege e preserva a Amazônia é o 10° vídeo mais postado em grupos e canais de extrema-direita no Brasil no Telegram (serviço de mensagens concorrente ao WhatsApp). O problema é que essa história não condiz com a realidade.
Lançado em julho, o filme Cortina de Fumaça, com conteúdos negacionistas sobre desmatamento, entrou rapidamente na lista de links do YouTube mais compartilhados no Telegram, segundo levantamento que analisou as postagens de janeiro a outubro.
Foram 237 postagens sobre o filme da produtora Brasil Paralelo, com mais de 2,5 milhões de visualizações no YouTube, no ano em que o Brasil bateu o terceiro recorde consecutivo de desmatamento na Amazônia.
"A gente percebeu que a temática ambiental importa a esses grupos quando resvala em questões políticas, como o aumento do desmatamento na Amazônia, uma crise do governo Bolsonaro", afirma Leonardo Nascimento, um dos coordenadores do estudo.
O mapeamento no Telegram foi realizado em parceria com os professores Paulo Fonseca, também do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia, e Letícia Cesarino, do programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Juntos, foram selecionados em um edital de pesquisa sobre desinformação, promovido pelo InternetLab.
A pesquisa analisou cerca de quatro milhões de mensagens transmitidas por 42 grupos e 108 canais de extrema-direita no Telegram, entre janeiro e outubro de 2021, com 277 mil e 3,3 milhões de usuários, respectivamente.
Criado em 2013, o aplicativo chegou ao Brasil em 2016. Sem moderação de conteúdo, o Telegram alcançou o posto de aplicativo móvel de mensagens que mais cresceu em 2021. No app, grupos podem alcançar até 200 mil pessoas — um diferencial em relação à limitação de 256 participantes no Whatsapp. Canais têm capacidade ilimitada: o do presidente Jair Bolsonaro tem mais de um milhão de inscritos. Procurado, o escritório do Telegram não retornou os pedidos de entrevista para explicar se adota mecanismos de controle de desinformação.
A reportagem teve o a algumas centenas de mensagens compartilhadas sobre a temática socioambiental. Um desavisado no aplicativo poderia acreditar que o atual governo reduziu o desmatamento ilegal em 70% e protege os direitos dos Yanomami, apesar de denúncias mostrarem famílias doentes, famintas e a disparada de mineração ilegal na terra indígena.
Uma das conclusões da pesquisa, afirma Nascimento, é que o Telegram funciona como um motor do YouTube, que remunera produtores de conteúdo, para canais de extrema direita. O levantamento mostrou que a plataforma de vídeos do Google é o ecossistema com maior número de citações no Telegram, com 440.576, seguido pelo Instagram e pelo Twitter, com 74.854 e 74.691, respectivamente.
Questionado, o diretor do longa e sócio da Brasil Paralelo, Lucas Ferrugem, respondeu por e-mail que não se trata de uma produção de extrema direita. Sobre os índices de desmatamento, afirmou que a produção mostra "dados irrefutáveis", e que "nenhum país preserva tanto quanto nós, e quem disser o contrário está mentindo." Ferrugem diz ainda que a equipe procurou "fugir das armadilhas narrativas: você pode cair na tentação de querer responder se há ou não aquecimento global." A íntegra das respostas pode ser conferida no InfoAmazonia.
O último relatório do Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), responsável por sintetizar o conhecimento científico mundial a respeito de mudanças climáticas, mostrou que, se não houver uma redução de emissões de CO2 no mundo, o aquecimento de 1,5º C a 2º C vai ser ultraado nas próximas décadas. No Brasil, país membro do IPCC, o desmatamento é um dos principais responsáveis pela elevação nos gases de efeito estufa.
Responsabilidade das plataformas
A análise de mensagens compartilhadas em grupos públicos, no entanto, apontou para um problema maior, mostrando que o aplicativo é um dos atores na distribuição de mentiras. "Não tem como compreender o Telegram sem entender as outras plataformas e vice-versa", diz Nascimento.
Em dezembro de 2021, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que "é por meio do Telegram que muitas teorias da conspiração e informações falsas sobre o sistema eleitoral estão sendo disseminadas sem qualquer controle". Como mostra o levantamento dos pesquisadores, as teorias não acabam nas urnas.
Em entrevista ao projeto Amazonas: Mentira tem preço, Nascimento fala sobre um ecossistema de desinformação multiplataforma, revelando a "cara" dos conteúdos falsos e teorias da conspiração no Telegram e o protagonismo do YouTube.
A pesquisa inicial era focada nas interações no aplicativo Telegram, mas o relatório final avançou para outras plataformas. Por quê?
Leonardo Nascimento -- A partir das análises de mensagens compartilhadas em grupos públicos no Telegram, percebemos que não tem como compreender o Telegram sem entender as outras plataformas e vice-versa. Não adianta olhar e resolver uma delas, porque não vai funcionar. Essa foi uma das nossas descobertas, que chamamos de ecossistema de desinformação multiplataforma. Por exemplo: vídeos não listados no Youtube, que você não encontra por sistemas de busca, são compartilhados por mensagem nos aplicativos. É um problema gigantesco e difícil de resolver, e nós estamos tentando encontrar saídas. A partir do Telegram, queremos entender cada uma das plataformas mais conhecidas, como Instagram e WhatsApp, e as novas, como Gettr e Parler.
O que vocês encontraram no Telegram?
LN -- Entre janeiro e outubro [de 2021], percebemos um aumento exponencial do número de grupos de usuários e de canais, como se estivessem esquentando os motores para as eleições do ano que vem. Nossa hipótese inicial é de que a maioria não é bot, mas gente conectada no formato de enxame. Se 2020 foi o ano da cloroquina e do tratamento precoce, que não tinham nenhuma base científica, em 2021 essa pauta morre e emerge uma nova, a antivacina. Fizemos também uma análise detalhada das duas primeiras semanas de setembro [quando ocorreram os atos antidemocráticos], que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Montamos uma estrutura de coleta computacional para analisar as imagens, um total de 2500. Nossa equipe não tem o aos dados das pessoas, nós invisibilizamos as informações do usuário e transformamos em um código para que ninguém fosse identificado. Isso é Importante tanto para o usuário quanto para o pesquisador.
Qual é o perfil de usuário que mais compartilha?
A gente criou uma terminologia para esse perfil: talkative ou tagarelas. Os números são espantosos. Tem indivíduo que a o dia inteiro postando, de 8h às 22h. Uma pessoa chega a enviar de 600 a 1000 mensagens por dia. Na próxima etapa da pesquisa, queremos entender o grau de protagonismo dessas pessoas.
Quais são os conteúdos que bombam no Telegram?
LN -- Na lista dos dez vídeos mais compartilhados, temos de ataques ao Supremo Tribunal Federal ao documentário Cortina de Fumaça [realizado pela produtora Brasil Paralelo]. Esse último chamou muito a nossa atenção. A temática ambiental importa a esses grupos quando resvala em questões políticas, como o aumento do desmatamento na Amazônia no governo Bolsonaro.
A partir dos dados que a equipe coletou, é possível dizer que alguma plataforma ou rede é protagonista?
LN -- O YouTube, sem dúvida, é o grande protagonista da desinformação. De janeiro a outubro deste ano, foram mais de 400 mil links do YouTube publicados nesses grupos. Em uma analogia com o tráfico de drogas, é como se os aplicativos fossem os aviõezinhos e o YouTube fosse a boca de fumo. O centro de produção é no YouTube e, para fazer a logística dessa produção industrial de desinformação, entram as redes e os aplicativos.
Por que o YouTube?
LN -- Nós temos duas hipóteses para explicar esse cenário no Brasil. A primeira é a remuneração que outras ou não têm ou oferecem em um volume menor. Então a gente precisa seguir o dinheiro para entender esse mecanismo, e sobre essa indústria de desinformação a gente sabe muito pouco. Para onde está indo esse dinheiro? Quem está ganhando com isso? As estimativas são pouco objetivas. A segunda é que o vídeo é um formato mais ível para a população brasileira, e a performance está associada à maneira que você mobiliza emocionalmente a audiência.
* A reportagem integra o projeto "Amazonas: mentira tem preço", publicado pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA.
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