Lei pode obrigar crianças a conviverem com abusadores

Cristina* acha que poderia ter sido diferente se tivesse dinheiro para fazer frente ao exército judicial do ex-marido. Serena* tinha dinheiro – os gastos do processo já aram de R$ 200 mil – mas se culpa por ter gravado sem acompanhamento os relatos de abuso do filho. Sob a acusação de induzir a fala da criança, a gravação acabou por prejudicá-la na Justiça. Ana Lúcia* desconfia que houve corrupção no caso que a afastou de seu filho e de seu emprego.
Cristina é cantora e garçonete. Ana Lúcia, psicóloga. Serena, arquiteta. Histórias de vida muito diferentes se cruzam em um enredo sinistro. Elas e outras três mulheres ouvidas pela revista AzMina foram afastadas dos filhos após relatarem suspeitas de abuso sexual. São, de acordo com as decisões judiciais, “alienadoras”.
Baseada na controversa teoria de Richard Gardner, a lei nº 12.318/2010 definiu a alienação parental como a “interferência na formação psicológica da criança ou adolescente”, praticada por um dos genitores (ou avós e outros parentes) contra o outro. A justificativa era proteger os filhos de casais separados – principalmente, os que estão no centro de processos litigiosos – e garantir a convivência com ambos os pais. A lei prevê que, caso haja indícios de difamação ou de práticas que dificultem o contato com o pai ou a mãe, a Justiça poderá determinar medidas, inclusive, para assegurar a proximidade com o genitor vítima da alienação.
O problema é que, com isso, suspeitas de abuso reportadas às autoridades vêm sendo consideradas provas de alto grau de difamação e afastamento deliberado. Medidas protetivas contra o ex-cônjuge também podem ser consideradas “alienação”, se a Justiça entender que foram infundadas. As penalidades vão de advertência, reversão da guarda, até a suspensão da convivência familiar, como aconteceu com Ana Lúcia.
Não há estudos quantitativos sobre a aplicação da lei da alienação parental nos tribunais do Brasil. O maior estudo empírico realizado sobre o tema, publicado em 2017, nos Estados Unidos, analisou 238 casos ao longo de 11 anos. A conclusão foi que os homens tiveram uma probabilidade 2,3 vezes maior de obter a inversão da guarda sob alegação de alienação parental em comparação às mulheres que apresentaram o mesmo argumento.
Ainda de acordo com a pesquisa, a lei da alienação parental pode ter sido usada para melhorar as chances de homens com outras ações em curso nos tribunais norte-americanos. Pais acusados de abuso que rebateram acusando a mãe de alienação parental tiveram sentença favorável, no caso da alienação, em 72% dos casos, um índice superior aos que não foram acusados de abuso (69%). A decisão – também em relação à acusação de alienação – foi favorável aos pais na ampla maioria dos casos envolvendo acusação de violência doméstica (73%), violência contra criança (69%) e abuso sexual contra a criança (81%).
“A lei da alienação parental representa um retrocesso na preservação do melhor interesse da criança”, sentencia Iolete Silva, integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Para a conselheira, os mecanismos punitivos previstos na lei são contraditórios, pois, “ao punir o cuidador, também estaremos punindo a criança e o adolescente, alijando-os de atores significativos em seu processo de desenvolvimento.”
“A lei da alienação parental desconsiderou tudo o que, até então, havia sido comprovado por pesquisas realizadas sobre o tema separação conjugal e guarda de filhos no país”, afirma Analícia Martins de Souza, doutora em psicologia social e autora do livro Alienação Parental: Um novo tema nos juízos de família (Cortez Editora, 2010). Ao invés de se apoiar nos estudos sobre o tema – produzidos por acadêmicos e especialistas em direito de família – a justificativa do projeto da lei da alienação parental utilizou um livro produzido por associações de pais separados e materiais traduzidos por esse tipo de organização.
Analícia explica que a disputa entre ex-cônjuges é recorrente em divórcios e pode influenciar a interpretação de sintomas físicos ou psicológicos como possíveis sinais de abuso, sem que isso implique, necessariamente, manipulação deliberada da mãe ou do pai, um dos pressupostos da teoria da alienação parental.
Ou seja, há uma confusão entre as atitudes dos cônjuges e fenômenos psicológicos. “A lei define alienação parental como uma conduta, mas, na psicologia, fenômenos psíquicos são insuficientes para comprovar a ocorrência de fatos concretos”, detalha Analícia. A rejeição da criança não prova, por si só, que ela tenha sido abusada por um dos pais ou manipulada pelo outro.
“Dedo na ferida”
Defensores da legislação afirmam que os eventuais equívocos no uso da lei da alienação parental são exceção. “A lei põe o dedo na ferida de quem transforma o filho em objeto de vingança de uma relação conjugal mal resolvida”, diz o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Família. Para ele, há um efeito “pedagógico” na normativa, maior do que o efeito jurídico.
“É como a lei Maria da Penha, que veio dar proteção e inibir a violência contra a mulher. Mas algumas abusam, alegando que qualquer discussão mais acirrada é violência e utilizando isso como estratégia de reivindicação de direitos”, compara Cunha.
Outro conhecido rosto na defesa da legislação é Analdino Rodrigues, presidente da Associação Brasileira de Pais Separados (Apase). “Erros pontuais da Justiça não abalam a credibilidade da lei da alienação parental”, afirma. Segundo ele, 8 em cada 10 acusações de abuso sexual contra crianças são falsas e motivadas por ressentimento das mulheres, que as utilizam para extrair bens materiais de seus ex-companheiros. “Sabia que existem pensões de R$ 20, 30 mil reais, menina? Com que se gasta esse dinheiro">var Collection = { "path" : "commons.uol.com.br/monaco/export/api.uol.com.br/collection/universa/transforma/direitos-da-mulher/data.json", "channel" : "transforma", "central" : "universa", "titulo" : "Direitos da mulher", "search" : {"tags":"78757"} };