'Não queria focar apenas na crise': como artesanato ajudou saúde de médica

Cardiologista do esporte, a médica Nicolle Farias de Queiroz, de 35 anos, abriu mão do atendimento clínico para atuar em UTIs exclusivas a pacientes com covid-19 assim que os primeiros casos surgiram no país. Trabalhando, muitas vezes, 18 horas por dia e lidando com quadros cada vez mais graves da doença, não demorou muito para a exaustão, o medo e a angústia se tornarem parte da sua rotina, a ponto de prejudicarem a saúde, tanto a física quanto a mental. No relato abaixo, ela conta como o artesanato e a solidariedade lhe ajudaram a recobrar o equilíbrio.
"Sou cardiologista do esporte e dou plantão na UTI já há alguns anos. Atendo em grandes hospitais de São Paulo, como o São Luiz (unidade Morumbi), e também tenho o meu consultório, na Vila Olímpia. No período do Carnaval, dois pacientes meus estavam internados, e eles começaram a falar muito sobre o novo coronavírus, morrendo de medo de pegar.
Naquela época, confesso que pensei que o vírus ia demorar para chegar ao Brasil e, quando chegasse, seria tranquilo. Mas veio rápido e não foi tranquilo. Vendo o grande aumento de casos de covid-19 e a necessidade cada vez maior de internação hospitalar, e por eu ter experiência em terapia intensiva, parei as minhas atividades de consultório para auxiliar na UTI.
No meio disso tudo, meus pacientes começaram a me procurar e decidi voltar a atender. Acabamos focando tanto no coronavírus e esquecemos que tem muita gente com outros problemas de saúde que também precisam de nós. Só que, com isso, a minha rotina, que já estava puxada, ficou insana. Em alguns dias, são 18 horas de trabalho."
Ansiedade e muita vontade de ajudar
"Ao mesmo tempo que ei a viver tudo isso, me questionei: se o meu paciente, que tem condição financeira, está precisando de médico, como está a situação de quem mora na rua e de quem não tem como pagar por uma consulta? Nesse momento juntou tudo, o cansaço, a angústia, o estresse... Comecei a ficar ansiosa e ter problemas para dormir, não comia direito e minha imunidade baixou. Nem nos dias de descanso eu conseguia relaxar, essa situação toda afetou o meu emocional.
Em uma das noites insone fiquei pensando o que mais eu poderia fazer para ajudar, além de trabalhar na UTI, e tive a ideia de doar máscaras. Muita gente não tem nem o que comer, imagina, então, se vai ter dinheiro para comprar máscara. Consegui arrecadar 1,2 mil peças. Muitos amigos me ajudaram, especialmente a Rita Cadillac (cantora e dançarina), que foi minha paciente, e meu avô Francisco, de 91 anos, que confeccionou algumas.
Como eu estava juntando as máscaras para doar, minha mãe deu a ideia de entregá-los junto. Fiz a ação no dia 30 de abril, nos arredores da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, no bairro Santa Cecília. Alguns amigos foram comigo fazer as entregas, inclusive a Rita.
Aproveitei essa ocasião para conversar com as pessoas, saber como estavam se cuidando e ar orientações. Foi a minha redenção e graças a isso equalizei o pensamento e acalmei o coração. Muita gente acha que médico não tem medo, não fica mal, mas nós somos iguais a todo mundo, nos preocupamos, ficamos tristes, angustiados, assustados.
Para ajudar ainda mais, também ei a atender diariamente em uma clínica popular na periferia de São Paulo e criei a Terça da Solidariedade no meu consultório. Baixei os preços para poder receber pessoas que não têm o a um hospital ou a uma consulta de qualidade.
Descobri no artesanato e na ação social uma maneira de relaxar, desestressar e, ao mesmo tempo, fazer o bem. E eu realmente precisava de uma válvula de escape de tudo isso, precisava cuidar da minha saúde mental. Auxiliar o próximo aqueceu meu coração, e o que antes era uma rotina para me distrair, virou uma rotina de amor.
Recentemente comecei a fazer um curso online de reiki; o próximo será de velas artesanais. Uma amiga me convidou e aceitei. Tudo o que puder deixar a minha mente equilibrada, eu estou aceitando."
Como cuidar da saúde mental
Diante de toda a mudança provocada pela quarentena, do medo de contrair o novo coronavírus e da incerteza de como será o futuro, é natural que as pessoas, sobretudo as que estão na linha de frente no combate à covid-19, fiquem estressadas, assustadas, ansiosas, preocupadas, tristes.
"O período de pandemia é muito apreensivo para a população em geral e, em momentos assim, a fantasia ganha asas. Ela permeia todas as possibilidades de fuga diante do temor e da morte. O indivíduo fica no desespero com a possibilidade de mudança, que são imprevisíveis e podem ser tanto afetivas, como a perda de alguém, quanto objetivas, ligadas a questões econômicas ("Como eu vou ganhar dinheiro?") e de sobrevivência ("Como vou comprar comida?)", analisa Nikolas Heine, psiquiatra do Hospital 9 de Julho.
No caso dos profissionais da saúde, Magda Khouri, psicóloga e diretora da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo) diz que eles caminham em um território à parte, vivendo o excesso de realidade e de situações muitas vezes incontornáveis. "Eles estão não apenas diante da morte, mas também das dificuldades de algo que ainda não é totalmente conhecido. Também têm de lidar com pressões, inclusive as emocionais, cansaço e questões pessoais. Isso tudo gera um grau de tensão e de estresses enorme."
Para manter o controle, os especialistas comentam que é importante ter uma rotina, com horários para deitar, levantar e se alimentar, praticar exercício físico com regularidade, evitar o excesso de notícias, se relacionar —de forma segura — com amigos e familiares, comer e dormir bem, restabelecer o contato consigo mesmo e, se necessário, buscar ajuda psicológica.
Outra recomendação é iniciar uma atividade que distraia, desconecte e dê prazer, como tem feito a médica Nicolle. Vale ler, bordar, pintar, meditar, cozinhar, escrever... "Escolha a que melhor se adeque a você, a que tiver vontade. Não adianta pensar que seria ótimo fazer natação se a piscina está fechada. Tem que ser mais pragmático. Gosta de jogar cartas ou jogos de tabuleiro? Então faça isso, e não importa se não pareça interessante para as demais pessoas", complementa Heine.
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