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Como a IA pode ajudar a decifrar um dos textos mais antigos do mundo

Placas de argila com o texto do Épico de Gilgamesh encontrada em Nínive (atual Mossul), no Iraque, e atualmente no Museu Britânico Imagem: DEA PICTURE LIBRARY/De Agostini via Getty Images

Colaboração para Tilt

18/05/2025 05h30

Um novo projeto de inteligência artificial batizado de Fragmentarium pode finalmente ajudar ou até terminar de decifrar o Épico de Gilgamesh, um dos textos mais antigos do mundo, talhado em placas de escrita cuneiforme há quase quatro mil anos.

A iniciativa é liderada pelo professor Enrique Jiménez, do Instituto de Assiriologia da Universidade Ludwig Maximilian (LMU), de Munique, na Alemanha, embora a Universidade de Fribourg, na Suíça, seja a base do projeto. O time do Fragmentarium usa ferramentas de machine learning para transpor uma das maiores barreiras do épico — o fato de que seu texto foi encontrado em cerca de 15 mil fragmentos na Biblioteca de Ashurbanipal em Nínive, atual Mossul, no Iraque.

O achado foi feito no início da década de 1850 por Austen Henry Layard, Hormuzd Rassam e W. K. Loftus, mas até hoje a reconstrução de Gilgamesh não foi finalizada. Isto porque porções diferentes das peças foram parar em diferentes países ao longo dos anos — entre eles Reino Unido e Estados Unidos —, mas também, acima de tudo, porque não há assiriologistas suficientes para encarar a missão complexa em tempo hábil. A especialidade é extremamente rara.

Alguns dos fragmentos do Épico de Gilgamesh do Museu Britânico estudados pelo projeto Fragmentarium Imagem: Divulgação/Museu Britânico

Como em um quebra-cabeças, a tecnologia do Fragmentarium reconhece os padrões e "encaixa" as peças digitalizadas das placas em velocidade, muito mais rápido do que um assiriologista conseguiria. Até o momento, os pesquisadores já conseguiram descobrir novos trechos de Gilgamesh e centenas de palavras e linhas que faltavam em outros trabalhos.

"É uma aceleração extrema do que acontece desde a época de George Smith", comentou ao jornal The New York Times o professor emérito da Universidade de Londres, Andrew George, uma das maiores autoridades no épico, que fez traduções de partes já conhecidas do poema.

A busca por Gilgamesh

George Smith, a inspiração de Andrew George, era um funcionário autodidata do Museu Britânico, em Londres, que em 1872 encontrou uma placa suja em escrita cuneiforme em um dos depósitos. Ele teria achado que esbarrou com um relato da saga bíblica de Noé ou outra parte do Livro do Gênese, mas aprendeu sozinho a língua suméria e identificou Gilgamesh.

Possível representação de Gilgamesh, hoje no Museu do Louvre, na França Imagem: Divulgação/Museu do Louvre

Ele se tornou uma lenda, procurando partes perdidas das placas em múltiplas viagens ao Oriente Médio, e morreu na última delas, aos 36 anos, em 1876. Desde então, outros estudiosos tentaram dar continuidade ao seu trabalho, mas nem todas as peças estão reunidas em um só lugar, já que, ao longo dos anos, porções do épico apareceram em sítios arqueológicos, depósitos de diferentes museus e até sendo vendidas clandestinamente.

O jornal The New York Times estima que haja, pelo menos, meio milhão de placas de argila em coleções mesopotâmias de museus internacionais. Mas com poucos profissionais habilitados a ler este tipo de texto, muitas das relíquias em acervos seguem nunca corretamente catalogadas, traduzidas ou publicadas. Por isso, cerca de 30% de Gilgamesh ainda se encontra desconhecido ao público após 170 anos de esforços.

Qual é a história da epopeia?

A trama suméria relata a amizade entre Gilgamesh, um semideus que é também rei de Uruque, e seu fiel escudeiro, Enquidu. Juntos, eles matam Humbaba, o monstro guardião da Floresta dos Cedros, a morada dos deuses. Como vingança, os deuses matam Enquidu.

Em negação e tomado pelo luto, Gilgamesh se recusa a enterrar o amigo até se arem sete dias da sua morte, quando uma larva cai do nariz dele. Para escapar o espectro da morte, o rei embarca em uma busca para encontrar seu anteado Utnapistim, uma figura que sobreviveu a uma tempestade como Noé e descobriu o segredo para a imortalidade.

Gilgamesh retratado entre dois minotauros semideuses em artefato assírio encontrado em Tell Halaf, na Síria, e parte do acervo do Museu Arqueológico de Alepo Imagem: DEA / G. DAGLI ORTI/De Agostini via Getty Images

Depois de vagar pela floresta, Gilgamesh chega a uma taverna no oceano, no fim do mundo. Lá, Siduri, a deusa que fabrica cerveja, dá ao herói um conselho: aproveite os prazeres simples da vida. Ele, no entanto, a ignora e continua buscando seu anteado até o encontrar — mas Utnapistim não consegue ajudá-lo a se tornar imortal, apenas compartilha com ele como era sua vida antes da grande enchente.

A sabedoria seria a recompensa de sua jornada, o que faria de Gilgamesh um precursor ou possível inspiração para outros heróis como Hércules ou Ulisses para alguns estudiosos.

Decifrando em alta velocidade

Até 2018, cerca de 5.000 fragmentos das placas do épico haviam sido corretamente conectadas. Nos últimos seis anos, a equipe do Fragmentarium conseguiu "encaixar" mais de 1.500 peças, incluindo um novo hino à cidade de Babilônia e outros 20 fragmentos com mais 100 linhas do texto principal do poema, ainda de acordo com o Times.

Os novos achados da IA revelam elementos das jornadas de Gilgamesh como, por exemplo, que após matarem o monstro, o rei e Enquidu viajam a Nipur — centro religioso da Mesopotâmia e lar do deus Enlil — para tentar acalmar os ânimos do deus pela morte de Humbaba, seu aprendiz. Ao NYT, Benjamin R. Foster, professor de assiriologia e tradutor de Gilgamesh da Universidade de Yale, revelou que durante sua participação no projeto encontrou novas linhas que revelam que Enquidu tenta convencer Gilgamesh a não matar Humbaba.

O professor Enrique Jiménez, que lidera o projeto Fragmentarium Imagem: Divulgação/LMU

Para ele, o trecho mais interessante, contudo, está em uma fala de Utnapistim. Ele conta ao rei que, depois que seus homens construíram a sua arca, ele "esbanjou" com eles em álcool durante uma festa. "Não tínhamos a palavra 'esbanjar' antes. E, na minha mente, ele está se sentindo culpado porque sabe que todas as pessoas que o ajudaram a construir a arca serão afogadas em poucos dias".

Algumas das descobertas do Fragmentarium já foram inclusas em novas edições de Gilgamesh (Sophus Helle, publicada pela Yale University Press em 2021) e a de George (Penguin Classics, em 2020) em inglês. No entanto, as traduções mais recentes ainda não foram publicadas — Jiménez anunciou que seu time deve divulgar ao público as novas porções através da Biblioteca Babilônia Eletrônica da LMU.

O trabalho entra em uma nova etapa, também. Com todo o acervo do Museu Britânico já examinado pela inteligência artificial, o time do Fragmentarium agora começa a colaborar com o Museu do Iraque, em Bagdá, na tentativa de encontrar mais peças perdidas do Épico de Gilgamesh.

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